À frente do Pasquim, ele testou os limites da censura até mesmo recuperando uma de suas frases mais famosas, “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”

Ao chegar ao Pasquim, no final dos anos 60 e assumir definitivamente o comando da redação no começo da década seguinte, Millôr Fernandes já tinha uma ascendência natural sobre seus colegas. A começar pela idade. Era um veterano que se aproximava dos 50 anos enquanto a maioria da redação era em média bem mais nova do que isso. Millôr tinha de profissão mais do que quase todos os outros tinham de idade.
A contar pela data que ele próprio divulgava, Millôr considerava o dia 15 de março de 1938 – por coincidência a data de nascimento de Luiz Carlos Maciel – como seu começo na profissão de jornalista. Foi este dia o primeiro marcado na sua carteira de trabalho na revista O Cruzeiro, para onde o adolescente de 14 anos – nascera em 16 de agosto de 1923 – fora levado pelo seu tio Armando Viola, então chefe da seção de gravura da publicação.
Em O Cruzeiro, Millôr fazia de tudo um pouco, não por nenhuma capacidade polivalente tão precocemente demonstrada, mas, sim, pela necessidade – dele e da revista – de preencher longos espaços editoriais com uma equipe reduzida. A redação naqueles tempos muitas vezes se resumia ao diretor Antônio Accioly Netto e ao desenhista Edgar de Almeida.
A capacidade de transitar aliada à curiosidade transformou o jovem Millôr numa figura conhecida por todos. Em pouco tempo, ele já estava acumulando funções como a de tradutor, vertendo para o português histórias escritas em inglês e que eram publicadas em O Guri, outra revista dos Diários Associados, esta dedicada ao público infanto-juvenil. E como Millôr havia aprendido inglês? Por conta própria, decorando palavras do dicionário.
A versatilidade de Millôr não passou despercebida por Frederico Chateaubriand, o Freddy, sobrinho do patrão, que o chamou para ser um dos integrantes da equipe da revista A Cigarra. Sua capacidade para o novo posto seria testada quase que imediatamente. O atraso de um colaborador deixou Freddy com uma página em branco na mão. Sem saber o que fazer, pediu a Millôr que preenchesse o espaço com algo. Millôr fez o que melhor sabia fazer – e que também lhe parecia tão natural: ocupar o espaço com frases, tiradas, piadas rápidas, chistes, desenhos. Tudo que já estava acostumado a fazer pelos corredores dos Diários Associados.
O sucesso foi instantâneo. A nova coluna marcava o surgimento de Vão Gogo e da seção Poste Escrito e se tornaria fixa na revista. A efetividade traria também a primeira crise: sabendo de seu valor, Millôr pediu seu primeiro aumento salarial ameaçando sair se não fosse atendido. Levou.
Ainda não havia chegado à maioridade e Millôr – para usar uma expressão tão constante atualmente – precisou se reinventar. A mudança foi completa. Ao requisitar sua certidão de nascimento, o jovem Milton – como até então era chamado por todos – descobriu que seu nome era outro. Avaliando com atenção a caligrafia do escrivão que o havia registrado, Millôr notou que o travessão que corta o “t” pelo alto estava desgrudado da base, parecendo muito mais um circunflexo acima do “o”. Assim, Milton morria para renascer como Millôr.
Entrando na década de 40, Millôr faria parte de uma das maiores revoluções na história da imprensa brasileira. O Cruzeiro começava sua vertiginosa ascensão que transformaria a revista num colosso editorial, revelando nomes, publicando reportagens históricas e pautando as demais revistas. Neste contexto, o sucesso da página de Millôr se ampliaria em 1945 com o surgimento de uma nova seção, o Pif-Paf, em que ele passaria a dividir a criação com o cartunista Péricles. Da mesma época também seriam os primeiros livros de Millôr – Eva sem Costela – Um Livro em Defesa do Homem, de 1946, lançado sob pseudônimo de Adão Júnior, e Tempo e Contratempo, de 1949, lançado sob o pseudônimo de Emmanuel Vão Gogo. No começo da década seguinte, mais revoluções, com a produção do primeiro roteiro cinematográfico, Modelo 19, e, logo depois, a estreia de sua primeira peça teatral, Uma Mulher em Três Atos.
A consagração era plena. Millôr produzia muito, com qualidade e com ótima receptividade por parte da crítica e do público. Escrevia peças e roteiros, assinava colunas e artigos, fazia traduções e expunha seus desenhos. A imensa exposição que seu nome e suas ideias passavam a ganhar começaram a lhe trazer problemas. Em 1959, Freddy lhe convidou para ter um programa na TV Itacolomi, que Millôr batizou como Universidade do Méier, atração em que ele aparecia desenhando e fazendo comentários. Já na TV Tupi, comandando o programa Treze Lições de um Ignorante, Millôr foi censurado ao fazer uma crítica a Sarah Kubitscheck, primeira-dama do país. Ele brincara com o fato de ela sem trabalhar ter recebido a medalha da Ordem do Trabalho.
A partir de então os embates de Millôr com a censura – externa ou interna – e a luta pelo que considerava a liberdade e a independência em suas criações serão constantes. O Cruzeiro seria a primeira etapa nesta batalha. Primeiro, com seu pedido de demissão por terem alterado um texto dele com a supressão da palavra “amante”. Demissão não aceita pelos patrões. Millôr voltaria a se incomodar novamente com um episódio que culminaria com a sua saída da revista.
A crise começou com os desenhos de A Verdadeira História do Paraíso, tema que já havia sido abordado nos dois programas que teve nas emissoras de Minas Gerais e do Rio de Janeiro e que também haviam virado peça teatral. Porém, quando foram publicados em dez páginas em outubro de 1963 pelo O Cruzeiro, o material passou a sofrer imediatos ataques de grupos católicos. Acuados, os editores não apenas desautorizaram seu principal colaborador como declararam-se surpresos com o material, acusando Millôr de quebra de confiança ao compromisso de criar “um humor inteligente e sadio”. Quando a polêmica estourou, Millôr estava em Portugal. Avisado pelo músico e humorista Juca Chaves, Millôr retorna ao Brasil, onde é recebido com uma carta de demissão assinada pelos diretores dos Diários Associados. A disputa avança com Millôr recebendo atos de desagravo de amigos jornalistas, escritores e atores. A questão trabalhista será decidida pela justiça, dando ganho de causa a Millôr. Num discurso proferido na época, durante um destes atos de apoio, Millôr disse sentir-se “como o navio abandonando os ratos”.
No mesmo ano em que se desligou de O Cruzeiro, Millôr transferiu-se para o Correio da Manhã, onde ficaria apenas um ano, partindo no ano seguinte para a criação de uma revista sua, Pif-Paf. O sonho da independência e da vida sem censura não seria possível num país já tomado pela ditadura e pelo governo militar. Millôr seria uma das primeiras vítimas da perseguição política e Pif Paf teria vida efêmera.
Foi toda esta experiência que deu autoridade a Millôr para escrever a carta em que fazia alertas sobre censura, liberdade de imprensa e longevidade no primeiro número do Pasquim. Em 1969, quando foi convidado por Tarso de Castro, Millôr já estava de volta à grande imprensa, assinando desde o ano anterior uma página em Veja, revista de informação da editora Abril que havia sido criada em São Paulo em 1968.
Os primeiros meses do mandato de Millôr Fernandes como diretor, entre 1972 e 1973, daria também um novo posicionamento ao Pasquim. A página 3 ganha claramente o perfil de espaço dedicado à palavra do editor. Ali Millôr transforma aquele latifúndio editorial em um feudo seu. A página ganha um título fixo, E Isso É Isso, e um selo. No canto superior esquerdo há um desenho em que o Pão de Açúcar se funde a um corpo feminino, e um lema, totalmente bairrista: “Um ponto de vista carioca”. Como é de seu feitio, Millôr ocupa a totalidade do espaço com frases (os “pensamentões” e os “pensamentinhos”), ilustrações e textos de maior fôlego. Também ao seu estilo, os textos alternam tiradas humorísticas com assuntos sérios. A página seria uma das que teve trajetória mais longa no jornal. Às vezes interrompida, como, por exemplo, quando Millôr passou uma temporada vivendo em Portugal, E Isso É isso permaneceria até quase o fim do mandato de Millôr na presidência do Pasquim.
Da fase Millôr, a capa mais emblemática talvez seja a do número 187, de fevereiro de 1973, que registra a assinatura do Acordos de Paz de Paris, o que não significou o fim das hostilidades. No exemplar, a primeira página adota uma versão em que o logotipo do jornal é adaptado, vira “Pazquim”. O título se completa com um cartum de Redi mostrando um soldado americano ao lado de uma enorme bomba com um formato semelhante à de um supositório e perguntando: “E agora, onde é que eu enfio isto?”.
A brisa da ainda incipiente abertura política também começa a soprar para os lados do Pasquim. Os novos parlamentares haviam sido empossados poucos dias antes quando em 24 de março de 1975 o telefone tocou na mesa de Dona Nelma. Do outro lado da linha, quem ligava pedia para falar com Jaguar. Nelma alcança o aparelho ao editor, com Sérgio Augusto ao lado. O que parecia trote era um curto recado de apenas duas frases vindo de Brasília. A primeira parte parecia um bálsamo, uma mensagem há muito aguardada. “Vocês agora não precisam mandar mais nada para censura”. O aviso se completava com uma quase ameaça e uma incumbência. “Agora a responsabilidade é de vocês”. Jaguar pôs o telefone no gancho e falou: “Estamos fodidos. Agora, como vamos fazer o jornal?”.
De imediato, houve uma discussão muito tensa. A edição que estava sendo preparada para ser enviada aos censores já estava praticamente fechada. Era uma edição comemorativa, a de número 300, com 40 páginas e com entrega prevista para dali a cinco dias. Estava prevista, inclusive, uma página desenhada por Demo que recuperava todos os acontecimentos narrados acima. Os personagens de Jaguar, Millôr, Ziraldo e Sérgio Augusto são facilmente identificáveis. Millôr resolve mexer na edição e testar os limites da censura que acabara de ser revogada. Na página 3 do jornal, escreve: “A responsabilidade sempre foi nossa”, no texto que trazia o título óbvio e provocador de “Editorial sem censura”. E prossegue: “A ausência de censura no Pasquim é assim, neste momento e neste país um privilégio amedrontador e quase insuportável”. Até chegar ao final de uma maneira irônica e agressiva. “Num país que publicações como Tribuna da Imprensa, Veja, Opinião, O São Paulo continuam a ser editados pela ignorância, pelo tédio e até pelo ódio pessoal dos censores, e o periódico Argumento está definitivamente proibido de circular, este jornal, só, pobre, sem qualquer cobertura – política, militar ou econômica – e que tem como único objetivo a crítica aos poderosos, não pode se considerar livre”.
O que Millôr escrevera era verdade. A suspensão da censura prévia em jornais e revistas fazia parte da estratégia dos generais Geisel e Golbery em aliviar o regime. Como se dizia na época era um gesto da “distensão lenta, gradativa e segura”. Um dos primeiros beneficiados havia sido o jornal O Estado de S. Paulo, sem censura desde janeiro. Na sequência viria o Pasquim e, mais adiante, a Veja (em 1976), o semanário Opinião (em 1977) e O São Paulo, jornal da arquidiocese paulistana (em 1978).
A provocação do editorialista surtiu efeito. Não o esperado, mas o previsível diante de tal afronta ao poder. O governo, muito provavelmente revoltado com o texto, mandou apreender toda a edição do jornal nas bancas. Tudo indicava o texto como sendo o pivô, porém, como lembraria Jaguar na edição 521, os motivos alegados pela censura foram outros: o uso da palavra “porrada” na tira Chopnics de Jaguar e Ivan Lessa, e uma dica de Millôr que gozava da então recém viúva Jacqueline Onassis dizendo que ela “não só nasceu de rabo para a Lua, como soube usá-lo”, Por estas piadas, os três jornalistas foram processados por “atentado à moral pública”.
Millôr testara os limites até mesmo recuperando uma de suas frases mais famosas, “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”, e publicando logo abaixo do logotipo na capa. A frase até seria explicada numa Dica no final da edição. “O slogan acima, que, a partir de hoje, passa a figurar sempre na capa do Pasquim como lema de ação deste jornal foi vetado pelos censores durante três anos, em mais de vinte tentativas que fizemos de publicá-lo. E, ao que parece, não é subversivo, não é corruptor, nem pornográfico. Antes, é uma desprendida toma de posição dos editores do pasquim, que veem a imprensa como um ato de crença no bem público”.
Já na edição 301, um pequeno detalhe no alto do expediente da página 2 revelava uma imensa mudança nos rumos do jornal. A Editora Codecri Ltda. passava a ter como diretor-responsável o nome de Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, o Jaguar. O Pasquim apreendido por conta do texto de Millôr foi também o último em que ele esteve à frente do jornal.
Quando deixou o Pasquim por vontade própria, irritado com a volta da censura no número 300, Millôr Fernandes já ocupava uma página semanal na revista Veja. Por conta de múltiplas tarefas e da habilidade para se valorizar e fazer bons contratos durante toda a carreira, Millôr chegava aos 50 anos sem problemas financeiros. Permaneceria em Veja até 1982, quando saiu por divergências editoriais. De imediato, conseguiu espaço semelhante em outra revista semanal, a IstoÉ. Publicado consecutivamente por duas revistas com sede em São Paulo, Millôr seguia morando no Rio. Em 1984, passaria a ter uma coluna no Jornal do Brasil.
No diário da família Nascimento Brito, Millôr ficaria até 1992. Entraria em diversas polêmicas com personagens tão diferentes entre si quanto o então prefeito Marcello Alencar e o diretor de TV Daniel Filho, para ficar em apenas dois exemplos. Seu último ano no JB seria marcado por disputas com o comando editorial que havia mexido em textos seus sem sua autorização, o que Millôr considerava uma afronta. Insatisfeito, Millôr deixou o jornal. A seguir, alternaria colaborações esporádicas em vários órgãos e publicaria, já em meados dos anos 90, com maior assiduidade nos jornais O Dia, do Rio, o Estado de S. Paulo e o Correio Braziliense, de Brasília.
Interessado em computação e novas mídias desde os anos 80, Millôr lançou no ano 2000 O Saite Millôr Online, no qual passou a publicar novos textos e desenhos além de recuperar antigos trabalhos. Teve uma última temporada em Veja a partir de 2004, mas logo se desentendeu com os patrões a partir do momento em que a revista começou a disponibilizar todo seu acervo – aí incluídos os trabalhos de Millôr entre 1968 e 1982 – em edições na internet.
Insatisfeito com o que considerava ser um uso indevido e não autorizado, Millôr tentou entrar em acordo com a Abril até o rompimento definitivo quando a empresa não apenas disse que manteria o material online como estava, como também não renovaria seu contrato. Millôr então moveria um processo contra a editora Abril e o Bradesco, banco patrocinador da digitalização do acervo da Veja, exigindo uma indenização de R$ 500 mil.
Estava em plena atividade profissional quando, no dia 16 de fevereiro de 2011, foi internado na clínica São Vicente, no Rio. Dois dias depois, foi noticiado que ele sofrera um acidente vascular cerebral isquêmico e estava na CTI. Ficaria internado até o final de junho, quando receberia alta, iria para casa, teria uma recaída e voltaria para ser internado por mais cinco meses. Millôr Fernandes então retornaria ao seu apartamento em Ipanema pela última vez e lá morreria em 27 de março de 2012 em decorrência de falência múltipla dos órgãos e parada cardíaca. Tinha 88 anos.
O veredito da ação movida por Millôr Fernandes contra a Abril sairia em setembro de 2013. A Editora Abril foi condenada a pagar uma indenização de cerca de R$ 800 mil.
(Leia mais histórias como esta no livro Rato de redação: Sig e a história do Pasquim.)
