Leite com dendê

Tárik de Souza vê como em Moacir de Todos os Santos, Letieres Leite transforma Coisas numa outra coisa, colocando o tempero da baianidade africana na música de do maestro de uma maneira respeitosa e contemporânea

Para ser lido ao som de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz em Moacir de Todos os Santos 

Capa do álbum “Moacir de todos os santos”, de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz (Foto: João Atala/Divulgação)

“Ao reunir suas composições, Moacir Santos criou mais do que um disco, um documento histórico autêntico dentro do mapa da música popular brasileira. Autêntico, pois trata-se de um músico negro escrevendo música negra, e não um garoto de Ipanema contando as tristezas da favela, ou de um carioca que nunca foi além de Petrópolis a enriquecer o cancioneiro nordestino. Histórico, por conter uma síntese completa e expressiva do formidável papel que o negro desempenhou em toda a formação de nossa música popular”. O texto de apresentação de Roberto Quartin, produtor do álbum Coisas, de Moacir Santos, de 1965, já salpicava farpas e “lugares da fala”, distribuindo carapuças para o cenário musical efervescente da época, mas ressaltando, acima de tudo, a “extrema musicalidade” do solista e os novos caminhos abertos por este disco “nos planos harmônico e rítmico”.

Bossanovista militante, eu vivia à cata dos fragmentos luminosos que Moacir ia espalhando pelo movimento. Tanto no papel de mestre, nos bastidores, de aprendizes como Baden Powell, Nara Leão, Sérgio Mendes, Paulo Moura, Carlos Lyra, Oscar Castro Neves, Roberto Menescal, Quarteto em Cy, quanto no de compositor, em gravações esparsas de seus alunos. Baden cravou as Coisa Nº 1 e Coisa Nº 2, em seu disco Swings with Jimmy Pratt. No mesmo ano, de 1963, Vinicius de Moraes estreava num álbum com Odete Lara, no selo Elenco, com arranjos de Moacir – a quem ele celebrou numa das faixas, a parceria com Baden Powell, Samba da Benção (“tu que não és um só, és tantos/ tantos como esse meu Brasil de todos os santos”). Ainda em 1963, em Elizeth Interpreta Vinicius, mais revelações: quatro das onze faixas eram parcerias do poeta com o músico nascido em Pernambuco, no lugarejo de Bom Nome, em 1926, e falecido em Pasadena, EUA, em 2006 Ainda em 1963, ele iniciava uma vereda paralela, a das trilhas de cinema, tendo participado de Ganga Zumba, de Cacá Diegues, Seara Vermelha, de Alberto D’Aversa (por indicação de João Gilberto a Jorge Amado), Os Fuzis, de Ruy Guerra, O Beijo, de Flavio Tambelini e a divisora de águas de seu percurso exterior, “Love in the Pacific”, de Zigmunt Sulistrowski, onde escreveu para 60 músicos.

Em 1964, Moacir Santos viveria uma espécie de apogeu autoral, a bordo do inesperado sucesso de sua Nanã, com letra de Mario (irmão da cantora Sylvia) Teles, que a tinha gravado inicialmente, em 1962. Do sexteto Bossa Rio, do pianista Sérgio Mendes (Você ainda não ouviu nada) ao grupo orquestral liderado pelo baterista Edison Machado (É Samba Novo), dois álbuns clássicos do samba jazz, ao portentoso A nova dimensão do samba, de Wilson Simonal, mais Quarteto em Cy, a heterodoxa estreia de Nara (que interpretou a música em vocalises sincopados), Moacir saía das sombras para o proscênio. Também com sua incisiva estreia vocal na Marcha do Amanhecer/Samba do Carioca”, da trilha do musical Pobre Menina Rica, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes. Arranjador da cantiga de cego Fica mal com Deus na gravação de Geraldo Vandré, do ano anterior, o paraibano letraria sua Dia de Festa, para seu disco manifesto político Hora de Lutar, em 1965.

Tratava-se da Coisa nº 6, uma das dez faixas (“Nanã” incluída, a de no. 5) da obra-prima definitiva intitulada Coisas, dispostas como se fossem “Opus” eruditos. Foi lançado em produção esmerada do selo Forma, de Quartin e Wadi Gebara Neto, em 1965, com capa dupla e pintura à óleo (tela de Patrícia Tattersfield), que remetia às edições do selo jazzístico Impulse. Titular do sax barítono em quatro faixas, Moacir escolheu os colegas entre os melhores, como Copinha (flauta), Wilson das Neves (bateria), Geraldo Vespar (guitarra), Chaim Lewak (piano), Julio Barbosa (trompete), Edmundo Maciel (trombone), Jorge Ferreira da Silva (sax alto). O approach é de um afro jazz originalíssimo, de tempero brasileiro, com leves tinturas dodecafônicas, ele que estudou com mestres como o alemão Koeullreuter (professor de Tom Jobim) e Guerra-Peixe. “Não se pode dizer que Moacir Santos tenha sido um compositor dodecafônico, mas é possível perceber elementos da estética e organização shoenberguianas em algumas de suas composições, a partir do que ele considerou sua fase de consciência musical, que se projeta inicial e justamente com Coisas”, anotou a instrumentista e musicóloga Andrea Ernst Dias, na estupenda biografia/ análise que escreveu sobre ele, a partir de sua tese de doutorado em flauta, pela Universidade Federal da Bahia. O livro Moacir Santos ou os Caminhos de um Músico Brasileiro (Editora Folha Seca, 2014) recapitula as andanças deste filho órfão da pobreza brasileira, que galgou as culminâncias da arte, através de uma profícua trajetória de professor e músico, posteriormente instalado na Califórnia, EUA, a partir de 1967.

Minha devoção a Coisas e ao fabuloso protagonista de outros discos lançados, na maioria, apenas no exterior (Maestro, 1972, Saudade, 1974, Carnival of the Spirits, 1975, Opus 3 Nº 1, 1979), durante muitos anos, soou quase solitária. A redescoberta de Moacir e a genialidade de sua obra só seriam colocadas na perspectiva correta pelo gigantesco projeto Ouro Negro, dos músicos Zé Nogueira e Mario Adnet, de 2001. Era a edição revista e muito ampliada de Coisas, com algumas de suas composições letradas por ases como Nei Lopes, Aldir Blanc e Regina Werneck e participações vocais de Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento, Joyce Moreno, Ed Motta e João Bosco. Também o elenco instrumental é superlativo: Cristóvão Bastos, Armando Marçal, Ricardo Silveira, João Donato, Nailor Proveta, Teco Cardoso, Jessé Sadoc, Vittor Santos, Jurim Moreira, Zeca Assumpção, Marcelo Martins, Jorge Helder, além de Andrea (que também abordou sua obra no Trio 3-63 e em edições do Festival Moacir Santos), Adnet e Nogueira. A partir deste resgate e também de sua sequência em Choros e Alegria (2005), Moacir foi redescoberto e (muito) regravado. Tanto por cantores, como Virgínia Rodrigues, Mariana de Moraes, Seu Jorge, Sergio Santos, Maúcha, Antonia e Muíza Adnet, o rapper Flavio Renegado, quanto instrumentistas, a exemplo do Trio Corrente, Quartabê (Lição # 1), Gisbranco, Nó em Pingo D’Água, Vittor Santos, Orquestra Jovem Tom Jobim, Orquestra Brasileira de Música Jamaicana, João Parahyba, Cristina Braga, Leo Gandelman, Anat Cohen e Marcello Gonçalves.

O recém-lançado Moacir de Todos os Santos, por Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz (Rocinante) acrescenta algumas catedrais a esse pedestal devido ao genial músico. É na verdade um encontro de contas entre duas vertentes superlativas das mesclas de afro jazz com batuques e afoxés. Letieres é um seguidor que nada deve ao mestre. E transporta o pernambucano para os terreiros da Bahia, em seu confronto acendrado de tambores com sopros, sem a mediação melódica de piano, baixo, violão ou guitarra. Na contracapa do disco, Gilberto Gil situou o enclave estético. “Letieres Leite reuniu em Salvador um grupo seleto e eclético de músicos, uns vinte e poucos, negros, mestiços e brancos, todos eles associados às vertentes mais populares ou mais clássico-eruditas da música que se faz na Bahia”, descreve. “Egressos das orquestras de concertos, dos conjuntos de baile, dos terreiros de candomblé, dos clubes musicais cultivadores do jazz e das vanguardas mais recentes do pop internacional, esses músicos se juntaram sob a regência de Letieres –, ele, multiartista interessado em promover resgates e impulsionar avanços na música da Bahia e do Brasil’. E arremata, a respeito da gravação: “inspirado no grande mestre pernambucano que o antecedera em algumas décadas, nesse mister de estimular a fusão mais abrangente e profunda das linguagens nas músicas afro-americanas (a estadunidense, a cubana, a brasileira), Letieres realizou, no breve período que a vida lhe concedeu, um trabalho de grande envergadura que deixa registrado agora neste disco”. O músico morreu de Covid aos 61 anos, em Salvador, em outubro de 2021, quando o álbum estava sendo mixado. No repertório sete dos dez temas do Coisas original, retrabalhados na sintaxe musical afrobaiana, com expansões para o jazz e a música erudita. O trajeto de Letieres elucida este resultado de múltiplas arestas.

Batizado apenas com os sobrenomes do pai, Antonio, Letieres Leite, o músico começou pelas artes plásticas, aos 13 anos, logo apto a participar de uma coletiva na Biblioteca Central de Salvador. Cursou matérias eletivas de música na UFBA e, em 1981, emigrou para o sul, onde participou de grupos como Banda de Neutrons, Espírito da Coisa e Abelha Rainha, além de se apresentar com artistas locais (Renato Borghetti, Nei Lisboa, Antonio Villeroy) e a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Em 1985, na Áustria, estudou no Franz Shubert Conservatorium, em Viena. Dividiu palcos com Stanley Jordan, Gil Goldstein, Freddie Hubbard, Herbie Koof e a banda Hip Noses. Em diversos festivais e eventos tocou também com Hermeto Pascoal, Marcio Montarroyos, Paulo Moura, Naná Vasconcellos, Elza Soares, Toninho Horta, Lulu Santos, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Timbalada, Daniela Mercury e Ivete Sangalo, de quem foi diretor musical.

O projeto do disco nasceu em 2018, durante as gravações de O Enigma Lexeu, exemplar do “universo percussivo baiano”, gravado por Letieres com seu quinteto para o Rocinante, de Sylvio Fraga e Pepê Monnerat. O maestro disse aos donos do selo que havia feito um show com temas de Moacir Santos, e recebeu o convite para transformar o espetáculo em disco. Foi necessário ampliar o estúdio, situado na Serra Fluminense, no intuito de fornecer condições ideais para a gravação, incluindo três decks adicionais, batizados Rum Pi e Lé, os atabaques do candomblé que nomeiam a orquestra, de 22 integrantes. Além de microfones adicionais para captação em nível máximo, Pepê colocou as três máquinas de fita de 24 canais para trabalhar ao mesmo tempo, algo inédito em gravações nativas. “Letieres escreveu os arranjos de um só mergulho, sem consultar os originais, de tão profundamente que conhecia o Coisas”, rebobina Fraga. “É um disco raro em muitos sentidos. A conexão entre maestros negros geniais, a percussão com papel de protagonista em uma orquestra, o conhecimento profundo dos ritmos das matrizes africanas permeando a construção dos sopros cosmopolitas, a dança como guia”, enumera. “Letieres é intrinsecamente ativista, colocando muitos pingos nos is em relação à importância incontornável que a música dos africanos escravizados tem na música brasileira”. Ela salta de cada uma das sete incandescentes releituras dos monolitos “satosianos”. Como a célebre e coleante Nanã (letra de Mario Telles), na versão para o inglês de Yanna Cotti, entoada de forma provocadora por um agudo Caetano Veloso, enquanto em torno dele borboleteia a flauta em sol de Letieres e pontuação do timbau de Tiago Nunes. Outro expoente, o trombonista Raul de Souza (1934-2021) turbina a Coisa nº 4, em diálogo com o trompete de João Teoria. Ele é mais um protagonista da Orkestra Rumpilezz, como o sax alto Paulo Andrade, solista da gingada Coisa nº. 1. “Só um gênio louco como Letieres para se aventurar a reler Coisas, mas tenho a impressão de que o maestro teria gostado. Ele colocou o dendê da baianidade africana na música de Moacir de uma maneira respeitosa e contemporânea”, define Rowney Scott, que enleva a valsa jazz Coisa nº. 2 com seu sax-soprano, acutilado pela atabaqueria de Kainã do Jê-je e o tambor rum, tripulado por Luizinho do Jê-je. As escalas recorrentes do sax barítono de Vinicius Freitas, da Orkestra, recepcionam o sax tenor assertivo do convidado Marcelo Martins, na “Coisa no. 9”. Joander Cruz sopra nos cumes do sax alto da “Coisa no.8, numa temperatura elevada que perpassa os naipes sob a fuzilaria percussiva. Em Moacir de Todos os Santos, Letieres transformou o Coisas de Moacir Santos, e da minha devoção, numa outra coisa. Igualmente cintilante, com vida própria e cidadania baiana. 

Nenhum pensamento

  1. Excelente! Viva Moacir Santos, Letieres Leite e Tarik de Souza que nos brinda com mais esta pérola. Quero re-encontrar Ouro Negro. Onde encontra-lo?

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