Se pensas que pensas

Fabiano Maciel escreve sobre Ópera do Malandro, o disco cinematográfico, conceitual e cheio de climas de Chico Buarque

Para ser lido ao som de Chico Buarque em Ópera do Malandro

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Foto: Reprodução

Em Meus Caros Amigos já havia alguns sinais. O Francis aproveitava para também mandar lembranças, o Chico achava que o samba dele era uma corrente, e O Que Será causava mais desalento do que esperança. No disco do Chico era a Flor da Terra e tinha o Milton cantando junto. No Geraes, do Milton, daquele mesmo ano (1976) era a Flor da Pele, tinha o Chico cantando junto e causava mais desolação ainda. Dois anos depois, Chico lançava o disco com a foto dele com uma samambaia atrás, uma falta de graça total, mas bastava a cara do Chico Buarque na capa e nada mais além de uma ilusão, uma feijoada completa e um cálice de vinho tinto de sangue. Na cantina do Grêmio Náutico União, um clube de atletas marrentos em Porto Alegre, que frequentei na infância e adolescência, sem nunca me sentir como parte daquele mundo – hoje é fácil de explicar – dois caras conversavam sobre o cálice ser um “cale-se” e curiosamente foi nesta mesma cantina, em 1979, que eu vi uma turma se estabacar de rir lendo o Pasquim que saiu na semana que Figueiredo tomou posse e eles riram tanto que eu saí dali, parei na banca e pedi um exemplar. Ri de algumas charges, boiei em várias outras e como cavalo não sobe escada, passei a ler o Ivan Lessa sem entender quase nada e gostar de quase tudo.

Neste mesmo ano em que o cavalo do Figueiredo subiu a rampa do Planalto, o Chico lançou a Ópera do Malandro. Para mim, a Ópera é o Álbum Branco do Chico. Duplo, operístico, cinematográfico, conceitual, cheio de climas. O João Baptista estava começando, mas a gente já sabia que não dava mais para aturar mais um milico no comando. O milagre tinha ido pro brejo definitivamente. Todo mundo de saco cheio. Até os milicos. Ainda era uma ditadura, mas já dava para começar a brincar de democracia. Hoje vivemos o contrário (Fora Bolsonaro!).

O começo da Ópera é arrasador: o Malandro na dureza que bebe um gole de cachaça, acha graça e dá no pé. O fio segue desenrolando, golpe após golpe, trambique após trambique, e o que começou como um sambinha sapatinho vai crescendo, crescendo até chegar no topo da pilantragem e voltar para o fim da escadinha social, em que o único a levar ferro é o malandro. O arranjo do Francis, mais do que manda lembrança, diz bom dia, boa tarde e boa noite com um naipe de metais arrasador e o acompanhamento afiadíssimo do MPB-4. Aliás, Chico com MPB-4 é assunto para outro texto.

Para não perder o fôlego, vem o inacreditável Hino de Duran, com A Cor do Som. Tudo nesta faixa é um milagre. Era o encontro de duas gerações da música brasileira. A dobradinha sensacional do filho do Noel e do Cyro Monteiro com a levada Bob Marley, em um arranjo fodaralhástico. Dadi dá a largada, depois Mu e Armandinho destroem e sinto muito turma do rock que chegou pouco depois na virada da década: nenhuma tecladeira RPM chega perto da atmosfera que Mu e a Cor do Som conseguiram dar nesta música. Nenhum verso conseguiu ser mais porrada: “A lei fecha o livro, te pregam na cruz, depois chamam os urubus…”. Ou: “A lei logo vai te abraçar infrator, com seus braços de estivador…”.

Dali vamos para se viver do amor, com Marlene, numa dor de corno abolerada, (sofrência não se dizia naqueles tempos). Tem ainda o Tango do Covil e a bunda mais sublime, o teste da farinha com Moreira da Silva lembrando seus 12 anos e João Nogueira exaltando uma malandragem que já tinha ido pro saco.

O disco ainda tem um elenco de cantoras estelar, daqueles de deixar presidentes da Fundação Palmares de careca quente, com Alcione, Nara Leão, Gal Costa, Elba Ramalho e Zizi Possi. Zizi regravava Terezinha, que dois anos antes tinha sido sucesso na voz de Bethânia e virado paródia em quadro antológico de Os Trapalhões.

E sobre sucesso e tocar no rádio, o maior enigma de Ópera do Malandro é Geni. A Geni tocou no rádio. E muito. Mesmo sendo longa. Mesmo sendo torta. Chico Buarque não era mais o rapaz da banda. Mas tocava no rádio. Da classe média e do povão também. Geni tava na boca do povo que precisava de alguém pra tocar pedra…

Em 1979, 1980 eu frequentava o DCE da URGS na João Pessoa. Tinha uma menina com olhos azuis enormes e cabelos compridos que eu sempre tentava me aproximar e numa tarde modorrenta consegui entabular uma conversa. Ela tinha tufos de cabelos debaixo dos braços, pois – segundo ela – depilação e desodorantes eram práticas capitalistas opressoras e ela fazia teatro no Ói Nois Aqui Traveiz e quem já viu o grupo do lendário Paulo Flores em ação sabe que talvez só o Zé Celso consegue ser tão ou mais cascudo. Bem, na tentativa de chegar junto, chamei a moça para ir ver a Ópera do Malandro, em cartaz na cidade, com Marieta e tudo mais. Mas ela me disse que a Ópera era um teatro burguês, careta e ultrapassado. Fui ao Teatro Leopoldina sozinho, dormi na peça e, burguês ou não, tive que concordar com ela. O disco sigo ouvindo até hoje, 41 anos depois. A menina de olhos azuis enormes e sovacos cabeludos eu nunca mais vi.

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